quarta-feira, 24 de dezembro de 2008

ENTREVISTA "FERNANDO DOLABELA

Fugir do risco é psicose

O criador da “Pedagogia Empreendedora”, implantada em escolas de 123 cidades, gira a metralhadora contra uma cultura que prepara crianças e adultos exclusivamente para conseguir um emprego.
por Eugênio Esber
Pode ter sido efeito da aceleração da bicicleta ergométrica em que se exercitava no momento da entrevista a AMANHÃ. Ou, ainda, de algum desconforto com a má situação do time do seu coração, o Atlético Mineiro, no campeonato brasileiro. O mais provável, porém, é que a contundência do mineiro Fernando Dolabela, 59 anos, tenha mesmo a ver com a paixão que devota ao estudo do empreendedorismo, tema dos nove livros que já escreveu. O primeiro deles, O Segredo de Luiza, de 1999, tornou-se um dos mais vendidos do Brasil na área de negócios. Dois livros seus deram origem a métodos que estão se difundindo pelo Brasil: Pedagogia Empreendedora, de 2003, inspirou o programa homônimo que já treinou 10 mil professores em 123 escolas, com reflexos no ensino de 300 mil alunos com idade entre 4 e 17 anos. A Oficina do Empreendedor, de 1999, gerou o método que já foi apresentado a 3.500 professores de 350 instituições de ensino superior. Curiosamente, o administrador Fernando Dolabela pretende – e de certo modo está conseguindo – mudar um paradigma educacional no qual não tem boas lembranças. “Eu era o pior aluno da classe no melhor colégio de Minas”, diverte-se, ao falar de sua inadaptação às regras da escola. Para Dolabela, o empreendedor é um rebelde, um inconformado – alguém que propõe o novo. Um perfil que ele não vê emergir das escolas e das famílias brasileiras. “A criança e o adulto aprendem uma só coisa: mandar currículo.”

Como ensinar empreendedorismo a uma criança de 4 anos?
Na verdade, não se trata de ensinar, mas de desenvolver, porque todas as pessoas nascem empreendedoras, assim como todo o mundo nasce com potencial para andar, cantar, tocar um piano. Se você vai ser Mozart ou não, dependerá de muitas coisas. Mas tocar um bifezinho todo o mundo pode. Trata-se, então, de desenvolver o empreendedorismo, de revelar e trazer à tona o que já existe de forma latente em todos nós. Eu contesto este mito de que o empreendedor possui uma configuração genética específica. Que é alguém possuidor de dons, feelings...

O que é empreendedorismo?
Este conceito está numa fase pré-paradigmática; não existe ciência. Temos, portanto, um conceito variável de acordo com a pessoa que responde à pergunta. Eu digo que empreendedor é alguém que sonha e busca transformar seu sonho em realidade. Não estou falando no sonho freudiano. Falo no sentido do sonho que se sonha acordado. Ou seja, empreender é agir, é buscar o sonho, é conceber o futuro. Mas é preciso que esse futuro que a pessoa concebe tenha congruência com o seu eu. E aí entra o papel da educação, que é estabelecer essa congruência para que o sonho possa ser realizado.
Essa congruência diz respeito à factibilidade, à acessibilidade... O sonho é acessível, é ponderável? Eu estou querendo criar baleia na lua?
O empreendedorismo é um conceito associado a empresa...
Este conceito nasceu na empresa mas já transbordou para todas as áreas da atividade humana. Ele contempla o empreendedorismo como uma forma de ser e não de fazer, e está ligado à relação que a pessoa estabelece com o mundo. Pode ser empreendedor o empregado de uma empresa, o político, o padre, o pesquisador, o poeta...

O que é mais importante? A capacidade de sonhar ou o senso prático e realizador?
Sonhar, em si, não quer dizer nada, embora seja um pressuposto. O que configura o empreendedor é a complementação com a ação.

As pessoas sonham muito menos do que poderiam?
Na nossa sociedade, nós não sonhamos. Nem a escola nem a família lidam com os sonhos. Nem a igreja. Ninguém lida com o sonho. O sonho é censurado na nossa sociedade porque é algo perigoso. Imagine alunos que sonham, filhos que constroem o seu próprio sonho.... São filhos que criam problemas para os pais. Porque quase todos os pais têm um sonho para o filho – e não querem que o filho sonhe. A sociedade, com suas imposições, com seu inconsciente coletivo, também impõe sonhos. Porque ela precisa disso, ela sobrevive de sistemas de competências para a produção. Então ela não quer muito sonho, não. Ela quer gente que produza.

Qual o ambiente mais hostil ao empreendedorismo, a família ou a escola?
A família, porque é mais forte. E a escola reforça isso. As duas são farinha do mesmo saco porque são formas de manifestação de um fenômeno chamado cultura. Ambas são inibidoras do potencial empreendedor. E essa inibição opera já quando a criança está no útero. A biologia nos define como uma espécie capaz de empreender. Mas a cultura é que define tudo e acaba com tudo. A cultura é que define inovação tecnológica. Inovação não é fenômeno científico. É cultural. A cultura determina tudo.

Empreendedorismo está ligado à disposição de correr riscos?
Isso faz todo o sentido. Mas aí eu vejo uma deturpação da percepção desse fenômeno. Ninguém gosta de correr risco. Muito menos o empreendedor. Não há ninguém que combata mais o risco que o empreendedor. Tanto é que ele desenvolveu ao longo da história um instrumento de miminização do risco. Aliás, vários instrumentos. A ferramenta mais objetiva é o plano de negócios. O empreendedor foge do risco o tempo todo. Foge, não. Perdão, a palavra não é fugir. Ele enfrenta riscos, mas tenta minimizá-los..

Que diferença há, então, entre o empreendedor e o não-empreendedor diante do risco?
É que o não-empreendedor acha que o mundo, a vida, pode rolar sem riscos. Que ele pode viver sem risco. E isso é coisa de um perfil psicótico. Esse é um autista, mesmo. É aquele cara que fala assim: “Eu quero pro meu filho que ele passe no concurso, entre pra Fiat, que é uma grande empresa, e não viva sob riscos”. Esse é o cara que está ferrado. A vida implica riscos. Viver é perigoso, como dizia o Guimarães Rosa. E se viver é perigoso, é porque é maravilhoso assumir riscos. As pessoas que não aceitam correr riscos são pessoas que se enterram antes de morrer. Não há nada mais triste do que ver uma pessoa fazendo concurso para um TCU não pelo tesão de trabalhar lá, porque deve haver algum..., mas pelo tesão da estabilidade. O cara faz concurso para ser estável. E aí não faz mais porcaria nenhuma na vida. É uma opção absolutamente desprezível. Conheço grandes funcionários públicos, pessoas inovadoras, e não é a eles que estou me referindo, claro, e sim a quem busca o serviço público com o único objetivo de ganhar o salário e não o de oferecer alguma coisa de bom. A pessoa estuda para o concurso público e, depois, no dia em que toma posse, se aposenta...

Quais são as críticas mais comuns ao seu método de educação empreendedora?
A crítica que eu tenho recebido é a crítica piramidal, de quem está no poder. E isso não surpreende. É preciso ter em conta que estamos numa sociedade que não estimula o empreendedorismo. É um fenômeno cultural. Por que é que existe o Vale do Silício? É porque o pessoal de lá é melhor, é mais bonito que a gente? Não é nada disso. A diferença é, principalmente, o estímulo social, o reconhecimento de que a atividade empreendedora é essencial. Lá, por exemplo, a legislação é favorável a quem empreende. O tema regulatório é favorável. Aqui no Brasil temos um quadro cultural inverso a este. Vejamos: o empreendedorismo é uma função de capital social. Capital social é função de democracia, rede, cooperação. Estas coisas estão muito imbricadas. Capital social é a capacidade das pessoas de se associarem para resolver seus problemas. Os países que se desenvolveram e estão hoje, aí, na frente, têm elevado estoque de capital social. Têm uma taxa de associativismo muito maior. Eles são capazes de cooperar. Eles entendem o fenômeno social. Mas quando você tem uma sociedade autocrata, clientelista, não há interesse que a base da pirâmide se fortaleça. Veja que toda nossa legislação favorece quem é grande e quem está no topo da pirâmide. Porque não existe aqui uma legislação amplamente favorável à pequena empresa? Porque Deus quis assim?

De que modo é possível abordar, diante de crianças, questões como lucro e investimento?
Considero atitude dirigista, e portanto nociva, induzir ou preparar a criança para o lucro. Esta é uma opção da criança. Ela irá descobri-la e adotá-la quando quiser e/ou puder. Como eu já disse, o conceito com que lido pressupõe uma forma de ser. Ter empresa é uma das infindáveis formas de se empreender. A educação para crianças busca desenvolver potenciais relativos à construção do futuro, realização, protagonismo, criatividade, liderança, perseverança....

Como fazer a criança distinguir sonho e ilusão sem conter seu ímpeto empreendedor?
É muito fácil. É só fazer duas perguntinhas para as crianças. Este é o eixo metodológico. Primeiro, você diz a ela: “Qual é o seu sonho?”. E depois então vem a segunda pergunta: “O que você vai fazer para transformar seu sonho em realidade?”. A criança é que vai ter de encontrar estratégias para transformar seu sonho em realidade. Este é o grande aprendizado empreendedor. Isso não se ensina. A própria criança desenvolve.

Mas é próprio da criança exercitar suas fantasias, livremente.
Não tem problema. A fantasia faz parte. Mas se ela quer alguma coisa concreta, ela vai ter de resolver o seguinte problema: como irá realizar aquilo? A criança mesma vai perceber o que é o factível ou não para ela. Se o menino de 7 anos diz que quer ser motorista de caminhão do lixo porque acha isso muito legal e o pai tenta dissuadi-lo por causa da globalização, do superávit primário, da taxa Selic e o cacete, o que é que aconteceu ali? Primeiro, o pai matou o sonho. Segundo, o pai privou o filho do cerne da atividade empreendedora que é a criança estabelecer a congruência do seu sonho com o seu eu. Aquela criança aprendeu o quê? Primeiro, que para aprender alguma coisa tem de falar com papai. Porque o pai é fera. Segundo: “A minha emoção não tem nada a ver com o conhecimento. O conhecimento é algo que está além da minha vida”. E aí ela não desenvolve a capacidade de fazer a congruência do sonho com o próprio eu. E se ela não sabe fazer essa adequação ela é uma idiota.

O professor exerce papel semelhante ao desse pai, não?
É isso o que o sistema educacional nos faz. A gente vai à escola e no final de tudo só sabe fazer uma coisa: procurar emprego. Porque a gente não tem condições de se inserir de outra forma. É porque tanto em casa quanto na escola o que temos não é uma educação. Não tem nada a ver com educação. O que temos é a preparação, é o desenvolvimento de competências para o mundo do trabalho. Do primário até a universidade, o sujeito não está se educando, não está se preparando para a vida. Está se preparando para o trabalho – e isso dentro de um clima e de um padrão industrial. Ele é uma mão-de-obra, um recurso para a produção. Então, a criança e, depois, o adulto, só têm uma relação com o mundo: fazer currículo. Ele é fera, ele se formou na USP, é um jornalista emérito, ele é um ótimo engenheiro, é um grande cientista – mas para se inserir no mundo ele só sabe uma língua: curriculum vitae. Mais nada. Houve muitos casos de cientistas e professores que se aposentaram por medo da reforma da previdência no governo FHC. E eu vejo entre eles aquele grande cara que o Brasil precisa – mas que fica de pijama. Apesar de ser um sujeito genial, ele só sabe mandar currículo. Não sabe fazer mais nada. Se alguém arrumar um trabalho pra ele, ele vai. Senão ele fica em casa, de pijama...

O que há de errado em optar pelo emprego?
Não estou criticando quem opta. A questão é que eu sempre fui muito grilado com a relação de dependência proporcionada pelo emprego. Não que eu seja contra. Mas a solução é muito pobre. É pré-histórica. Porque os poderes são desbalanceados. E isso sempre me marcou muito. Porque no emprego você se insere dentro de um mundo em que o espaço para ser você mesmo, o espaço para você expandir seu ego – a gente chama isso de “espaço de si” – é muito limitado. Por isso eu sempre achei que, em termos teóricos, não existe um só empregado que seja feliz. Claro, isso vai como uma metáfora. Só que a dificuldade de se ser feliz no emprego é muito grande. Por quê? Porque, geralmente, o sonho não é seu. Acontece de haver coincidência de sonhos, claro. No entanto, ele sempre vai pensar assim: “Tá tudo bem, mas se eu pudesse estaria em outra condição”. Você encontra empregados satisfeitos, adaptados. Mas felizes, mesmo, você vê poetas, artistas, empreendedores. Porque são pessoas que estão criando, inventando moda, rompendo com padrões, transformando a sociedade.

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